Imagine a seguinte situação: você é uma mulher brasileira adulta, em 1971. Você gosta de jogar futebol e – que sorte! – você nasceu no país de Pelé e Garrincha! O único infortúnio é que você nasceu mulher e, segundo o artigo nº54 do decreto-lei nº 3.199 de 1941 (que só seria revogado em 1979), você não pode “(...) se engajar em atividades esportivas incompatíveis com as características de sua natureza". Lamentavelmente, você não podia dizer, àquela época, que você se sentia masculina o suficiente para jogar futebol e se identificava como homem. Não ia adiantar.
O mesmo podemos dizer a respeito da mulher adulta que, em 1960, não podia abrir uma conta independente no banco, mesmo se desejasse ser um homem (e, provavelmente, muitas de nós desejariam).
E o mesmo também se aplica a todas as mulheres, de todas as origens, que até o início do século XX não podiam votar ou ser votadas. Mesmo no caso de se declararem homens (o que, provavelmente, nem lhes passava pela cabeça).
Há algo em comum nessas restrições impostas às mulheres: é o fato de que todas são restrições impostas ao SEXO feminino. E não ao “sentimento de mulher” ou ao “gênero com as quais se identificavam” – para que soe mais polido de dizer.
Voltemos ao nosso exercício imaginativo: imagine agora que você é uma atriz em 2000, no início de sua carreira, buscando fazer testes nos estúdios de cinema. Quais seriam as dificuldades experimentadas? Podemos imaginar que, provavelmente, você iria ter que se submeter a dietas e procedimentos estéticos para garantir espaço no competitivo mundo do audiovisual. E, com alguma chance de acertar, podemos dizer que sofreria assédio. Além disso, observando o noticiário, sabemos que a jovem atriz, seguramente, receberia um salário inferior aos dos seus colegas do sexo masculino. Isso sem contar os detalhes, que é onde mora o diabo: e se ela tivesse que faltar um teste por cólica ou dores menstruais? E se engravidasse durante a gravação de uma película? E se tivesse que trabalhar com um assediador? E se alguém na família adoecesse e ela tivesse que se ausentar para cuidar, como se espera de uma mulher?
Agora, vamos lá: imagine que você é um ator no início de sua carreira, buscando fazer testes. Certamente encontraria dificuldades, mas elas não seriam as mesmas citadas acima, concorda?

Karla Sofia Gastón é uma pessoa que viveu como homem até os 40 anos. Casou-se com a namorada que conheceu aos 19 anos, com quem vive até hoje, e tem uma filha. Fato é que, até os 40 anos de idade, todos os percalços, eventualmente, encontrados na sua carreira artística foram por ser, digamos, um ator sem brilho, e não por ser mulher.

Agora, com seu cabelo longo e maquiagem, essa pessoa concorre ao maior prêmio da indústria audiovisual ao lado de mulheres que, ao longo de suas carreiras, sofreram com o sexismo dentro da indústria e experimentaram o mundo a partir das suas vivências, circunscritas nos seus corpos de mulheres.
Há algo dessa experiência que é comungado entre as mulheres, trata-se de uma trajetória que se constrói na materialidade dos seus corpos e da sua natureza reprodutiva.
Lutamos para garantir direitos baseados no sexo, reconhecendo nossas diferenças. Afinal, homens e mulheres não são iguais e é por isso mesmo que ambos precisam estar representados na política. É por isso que lutamos pelo voto, pelo espaço separado nos esportes, por uma licença maternidade ampliada e compatível com a demanda desse corpo de mulher que é diferente do corpo do homem – o humano universal.
É por tudo isso que somos obrigadas a reconhecer que são abaixo de zero as chances de que, no Oscar, o contrário ocorra: É inimaginável que qualquer pessoa do sexo feminino se autodeclare homem trans e assim, “tire a vaga” de uma pessoa do sexo masculino, na categoria melhor ator do prêmio mais importante do cinema. Os homens sabem defender os seus espaços. Todas as brechas que alcançamos, foram fruto de muita luta e conquistas. Inclusive uma categoria exclusiva de premiação (vamos lembrar que nem sempre as mulheres puderam atuar).
O que estamos tentando argumentar é: Karla Sofia Gascón ocupa a cadeira de uma mulher – que poderia ser Nicole Kidman, Tilda Swilton ou Kate Winslet, para citar algumas das atrizes indicadas ao Globo de Ouro. Uma dessas mulheres não pôde concorrer ao Oscar de melhor atriz porque, aos 40 anos, um homem decidiu que era uma mulher.
Não parece justo.
Escrevemos esse artigo como um passo em direção ao reconhecimento da necessidade de um debate público mais amplo sobre o tema da ocupação de espaços femininos. Apenas lamentamos que o diálogo não possa acontecer em todos os ambientes. O motivo é evidente. Somos mulheres.