Cuidado responsável não é omissão: a exigência de evidência científica em intervenções de afirmação de gênero na infância e adolescência
- Mátria Associação Matria
- 17 de abr.
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Atualizado: 19 de abr.
por Raquel Marques, advogada e Doutora em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina da USP
A recente publicação da Resolução nº 2.427/2025 pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) reacendeu intensos debates em torno da ética médica, da autonomia individual e do cuidado à saúde de pessoas com incongruência de gênero. O texto normativo restringe o uso de bloqueadores hormonais e hormonioterapia cruzada a maiores de idade, condicionando cirurgias de redesignação a uma idade mínima de 21 anos, desde que precedidas de avaliação prolongada por equipe multiprofissional. A medida foi celebrada por alguns como um ato de responsabilidade institucional, e atacada por outros como retrocesso e transfobia normativa. No entanto, sob o ruído do debate político, muitas vezes se perde a questão fundamental: em quais circunstâncias é eticamente admissível, do ponto de vista da medicina baseada em evidências, realizar intervenções corporais de alto impacto em sujeitos ainda em desenvolvimento?

A medicina, enquanto profissão regulada e dotada de poder sobre corpos e subjetividades, não pode operar com base apenas em demandas simbólicas ou imperativos identitários. Ao contrário, deve se pautar por princípios técnicos e éticos universais, entre os quais se destaca o princípio da precaução. Originalmente consolidado na área ambiental, esse princípio foi incorporado à bioética justamente para lidar com situações em que os efeitos de uma conduta podem ser graves, irreversíveis e insuficientemente conhecidos. Segundo Daniel Callahan, um dos fundadores da bioética moderna, a precaução exige que, na ausência de consenso científico, a intervenção só se justifica quando há demonstração positiva de que seus benefícios superam os riscos. Em outras palavras: não é necessário provar que esperar faz mal — é necessário provar que intervir faz bem, e que isso pode ser feito com segurança.

Ocorre que as intervenções de afirmação de gênero em crianças e adolescentes — especialmente o bloqueio da puberdade e a introdução de hormônios sexuais secundários — envolvem riscos significativos. Entre eles, destacam-se alterações irreversíveis na densidade óssea, comprometimento da fertilidade, interferência no desenvolvimento neurocognitivo e risco de arrependimento posterior. A literatura científica sobre o tema ainda é escassa e, segundo a Revisão Cochrane de 2019 e os pareceres técnicos do National Institute for Health and Care Excellence (NICE), os estudos disponíveis apresentam baixo nível de confiabilidade, amostras reduzidas, ausência de grupos-controle e tempo de acompanhamento limitado. Portanto, afirmar que existe consenso científico favorável à hormonização precoce não corresponde à realidade dos dados disponíveis.

É por isso que países com tradição consolidada em medicina pública de qualidade — como Reino Unido, Suécia, Finlândia e Noruega — vêm revisando suas diretrizes clínicas para restringir o uso de bloqueadores hormonais em menores. O caso da Tavistock Clinic, no Reino Unido, é emblemático: após denúncias de medicalização apressada e ausência de protocolos clínicos robustos, a unidade foi encerrada e substituída por centros com abordagem mais cautelosa e centrada em avaliações psicossociais prolongadas. O movimento internacional, portanto, não é de proibição por discriminação, mas de contenção diante da fragilidade das evidências. O que se busca preservar não é a norma, mas o próprio prestígio da medicina baseada em ciência.
Ao lado do princípio da precaução, impõe-se outro conceito central: a prevenção quaternária, formulada por Marc Jamoulle e reconhecida pela Organização Mundial da Saúde. Trata-se do dever ético do médico de proteger o paciente contra intervenções desnecessárias ou excessivas. A prevenção quaternária rejeita a lógica da resposta automática ao sofrimento com um procedimento médico, lembrando que o cuidado, muitas vezes, consiste justamente em dizer “ainda não”. Em se tratando de adolescentes — cuja identidade pode estar em formação, e cuja maturidade emocional e cognitiva ainda está em desenvolvimento —, a medicalização precoce pode funcionar mais como forma de fuga da angústia parental e social do que como efetiva resolução do sofrimento.
Reconhecer esse risco significa apenas reafirmar que a medicina deve responder à dor com responsabilidade e evidência, e não com pressa e marketing simbólico. O próprio DSM-5, da American Psychiatric Association, aponta que uma parte relevante das crianças com disforia de gênero não mantém esse diagnóstico na vida adulta. Isso não significa que essas crianças estejam “confusas” ou “enganadas”, mas que a identidade de gênero pode, em muitos casos, ser dinâmica — e que, portanto, decisões irreversíveis não devem ser tomadas de forma precoce, especialmente se motivadas por sofrimento transitório, influências externas ou pressões familiares.
Do ponto de vista jurídico, essa lógica se ampara no princípio do melhor interesse da criança, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em tratados internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança. Tal princípio autoriza, e por vezes exige, que o Estado intervenha para proteger crianças de riscos que elas não têm condições de avaliar plenamente. A vedação de intervenções hormonais e cirúrgicas antes da maioridade civil, nesse sentido, não representa uma violação de direitos, mas uma forma de proteção proporcional à gravidade dos efeitos envolvidos.
É compreensível que muitos ativistas e profissionais desconfiem das intenções de figuras públicas hoje associadas à defesa da nova resolução, como o conselheiro do CFM, Raphael Câmara, cuja atuação em temas como cloroquina durante a pandemia foi amplamente criticada. No entanto, a validade de uma norma não se mede pelo currículo ideológico de seus defensores, e sim por sua coerência com os fundamentos técnico-científicos e bioéticos da medicina. Recusar uma política sanitária apenas por ser promovida por um ator politicamente rejeitado seria incorrer na falácia ad hominem. É desconfortável, sim, estar ao lado de pessoas com quem se diverge radicalmente — mas coerência argumentativa exige que se mantenham os critérios, mesmo quando os aliados são circunstanciais.
Portanto, a Resolução nº 2.427/2025, embora possa ser aperfeiçoada, não constitui um retrocesso per se. Ao condicionar o acesso a intervenções de afirmação de gênero em adolescentes a critérios objetivos, a norma reafirma o dever de prudência da medicina, protege os profissionais contra pressões externas sem base técnica e resguarda os próprios adolescentes de decisões precoces que poderão comprometer sua saúde futura. O cuidado, nesse contexto, não é sinônimo de afirmação imediata de identidade, mas de compromisso com a integridade física, emocional, cognitiva e reprodutiva do paciente em formação.
Não se trata de negar direitos, mas de afirmar deveres. O dever de não causar dano. O dever de proteger os mais vulneráveis. O dever de resistir à transformação da medicina em palco de disputas simbólicas ou em ferramenta de legitimação de agendas políticas, quaisquer que sejam seus matizes. A autonomia é um valor fundamental, mas ela só pode ser exercida plenamente quando há maturidade para compreender consequências, tempo para refletir e evidência clara sobre os riscos e benefícios. A medicina responsável não nega a identidade de ninguém — mas também não pode permitir que identidades em formação sejam instrumentalizadas por imperativos ideológicos ou por desejos imediatos de pertencimento. Cuidar, nesse caso, é esperar. É acompanhar. É proteger. E é, sobretudo, manter a medicina como um território da ciência e da ética, e não da conveniência.