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"Sexo atribuído no nascimento": O establishment médico está traindo a ciência, a lógica e o bom senso

Por Alan Sokal e Richard Dawkins

Publicado de forma ligeiramente resumida no Boston Globe, em 8 de abril de 2024.

Tradução por apoiadores da MATRIA


A American Medical Association (Associação Médica Americana) afirma que a palavra “sexo” - masculino ou feminino - é problemática e desatualizada; e que todos nós deveríamos agora usar uma expressão “mais precisa”: “sexo atribuído no nascimento".


A American Psychological Association (Associação Americana de Psicologia) concorda:

termos como “sexo de nascimento* e correlatos são considerados ‘depreciativos’ e implicam de maneira enganosa, que “o sexo é uma característica imutável”. A Academia Americana de Pediatria também está de acordo: “sexo”, declara a AAP, é ‘uma atribuição feita no momento do nascimento’.


A Associação Americana de Psiquiatria, que tinha “masculino/feminino” na quarta edição de 1994 do seu Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, e “masculino/feminino de nascimento”, na quinta edição de 2013, mudou o texto para “indivíduo designado como masculino/feminino no nascimento” em sua revisão de 2022. E mais recentemente, até mesmo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças nos incentivam a dizer “atribuído” ou “designado como sexo masculino/feminino no nascimento”, ao invés de “biologicamente masculino/feminino” ou “geneticamente masculino/feminino”.


As pessoas defendem essa revisão léxica, tanto por motivos supostamente científicos, quanto porque se diz que a terminologia tradicional de masculino e feminino prejudica a ‘inclusividade’ e a ‘equidade’. Mas essas alegações não se sustentam. E o discurso das associações médicas e a linguagem jornalística por ela utilizada distorcem fatos científicos simples, de forma irreconhecível.


Quase todos os animais, assim como muitas plantas, se reproduzem sexualmente. Isso ocorre pela combinação de um gameta grande, chamado óvulo (ou ovo), com um gameta pequeno, chamado espermatozoide. Embora algumas plantas (“hermafroditas”) e animais produzam tanto óvulos quanto espermatozóides, não existem espécies hermafroditas de mamíferos.


Nos mamíferos, cada indivíduo produz apenas um tipo de gameta. Os indivíduos que produzem (relativamente poucos) óvulos são chamados de fêmeas; os que produzem (grande quantidade de) espermatozóides são chamados de machos. Quem determina se o embrião de um mamífero se desenvolve como macho ou fêmea é o par de cromossomos sexuais: XX para fêmeas, XY para os machos.


Em resumo, o sexo em todos os animais é definido pelo tamanho do gameta: o sexo em todos os mamíferos é determinado pelos cromossomos sexuais; e existem somente dois sexos: masculino e feminino.

É claro que tudo isso não é novidade: é conhecido há mais de um século e é parte do material básico de qualquer curso de biologia de um ensino médio de qualidade.


Certamente, as peculiaridades da mutação ou do desenvolvimento pré-natal podem deixar alguns indivíduos incapazes de produzir gametas viáveis. Ainda assim, um indivíduo infértil com um cromossomo Y é do sexo masculino, assim como uma pessoa com uma perna só continua sendo um membro pleno da nossa espécie bípede.


Muito se especula sobre o fato de pouquíssimos seres humanos nascerem com padrões cromossômicos diferentes de XX e XY. O mais comum, a síndrome de Klinefelter (XXY), ocorre em cerca de 0,1% dos nascidos vivos; esses indivíduos são anatomicamente do sexo masculino, embora muitas vezes inférteis. Algumas condições extremamente raras, como a síndrome de la Chapelle (0,003%) e a síndrome de Swyer (0,0005%), provavelmente não se enquadram na classificação padrão de masculino/feminino. Mesmo assim, a divisão sexual é um binário extremamente claro e evidente, tão binário quanto qualquer distinção que você possa encontrar na biologia.


Então, como ficam as alegações das associações médicas sobre “sexo atribuído no nascimento”?

O nome de um bebê é atribuído no nascimento; ninguém duvida disso. Mas o sexo de um bebê não é “atribuído”; ele é determinado na concepção e, em seguida, observado no nascimento, primeiro pelo exame dos órgãos genitais externos e, depois, em casos de dúvida, pela análise cromossômica. É claro que qualquer dessas observações podem ser interpretadas erroneamente, em casos raros, o sexo informado na certidão de nascimento é impreciso e precisa ser corrigido depois. Mas a possibilidade de errar na interpretação não muda a realidade do que está sendo observado - o sexo de uma pessoa - que é uma realidade biológica objetiva, do mesmo modo que seu grupo sanguíneo ou seu padrão de impressão digital, e não é algo “atribuído”. Os pronunciamentos das associações médicas não passam de um construcionismo social descontrolado.


O sexo é uma característica fundamental da espécie humana; é uma variável importante para a psicologia, a sociologia e as políticas públicas. Em todo o mundo, são os homens que cometem a grande maioria dos homicídios; as mulheres têm muito mais probabilidade de serem mães solteiras do que os homens. Embora essas distinções sejam estatísticas, não absolutas, elas realmente importam. Nosso discurso público fica empobrecido e distorcido se não formos capazes de falar e escrever sobre sexo de forma direta. E em nenhum outro lugar essa perda é mais clara do que na medicina.


Durante décadas, as feministas protestaram contra a negligência do sexo como variável no diagnóstico e no tratamento médico, e contra a suposição tácita de que os corpos das mulheres reagem de forma semelhante aos corpos dos homens. Há dois anos, a prestigiosa revista médica The Lancet finalmente reconheceu a legitimidade dessa crítica, mas os editores não conseguiram usar a palavra “mulheres”. Em vez disso, a capa da revista proclamou com pompa: “Historicamente, a anatomia e a fisiologia dos corpos com vaginas têm sido negligenciadas. Mas agora essa concessão dialética pode se perder, uma vez que a negação do sexo biológico ameaça prejudicar a formação dos futuros médicos.”


A relutância recém-descoberta do establishment médico em falar honestamente sobre a realidade biológica provavelmente decorre de um desejo louvável de defender os direitos humanos das pessoas transgênero. Embora o objetivo pareça louvável, o método escolhido é equivocado. Proteger os transgêneros contra a discriminação e o assédio não exige fingir que o sexo é meramente “atribuído”.


Nunca é justificável distorcer os fatos a serviço de uma causa social ou política, por mais justa que seja. Se a causa for realmente justa, então ela pode ser defendida com a aceitação total dos fatos sobre o mundo real; se isso não puder ser feito, então a causa não é justa.


E quando uma organização que se proclama científica distorce os fatos científicos a serviço de uma causa social, ela prejudica não apenas sua própria credibilidade, mas a da ciência em geral. Como é possível esperar que o público confie nas declarações do establishment médico sobre outras questões controversas, como as vacinas - questões sobre as quais o consenso médico está realmente certo - quando ele deturpa de forma tão visível e flagrante os fatos sobre algo tão simples como o sexo?


Alan Sokal é professor de matemática na University College London e professor emérito de física na New York University. Ele é coautor (com Jean Bricmont) de Fashionable Nonsense: Postmodern Intellectuals' Abuse of Science, e autor de Beyond the Hoax: Science, Philosophy and Culture.


Richard Dawkins é Professor Emérito de Compreensão Pública da Ciência na Universidade de Oxford. Ele é autor de dezessete livros, incluindo The Selfish Gene e The Ancestor's Tale.



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