top of page

Sobre a Lei Maria da Penha e o MI 7452

Por Yasmin Barcellos

OAB RJ 212996


A Lei Maria da Penha é uma lei de natureza mista civil, penal administrativa e processual penal e civil, com inúmeros reflexos no direito penal material.


No julgamento do Mandado de Injunção (MI) 7452, o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu a aplicação das medidas protetivas de urgência a homens em relações homoafetivas, sendo aplicável também aos homens BGTI+, a medida protetiva de afastamento do lar (Art. 22 I), proibição de contato (Art. 22. III, “a”), proteção patrimonial (Art. 24), providências de assistência e acolhimento (Art. 8º e 9º) e o conceito de formas de violência psicológica, moral, patrimonial e sexual (Art. 5º e 7º).


O acórdão explicita que não é aplicável a esse grupo o art. 24-A da Lei n. 11.430/2006 que prevê o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência.


Ou seja, foi deferida a esse grupo a utilização das medidas protetivas da Lei Maria da Penha, mas caso essa medida protetiva seja descumprida no bojo da relação homoafetiva, esse descumprimento não enseja crime, como está previsto no caso da mulher.


A medida protetiva no contexto da Maria da Penha tem caráter processual de natureza cível, com reflexos penais e administrativos (no crime do Art. 24 de descumprimento de protetiva, afastamento do lar, determinação de apreensão imediata de arma de fogo do agressor, etc).


Sim, agora os homens poderão se utilizar de alguns dispositivos da Lei Maria da Penha.


O Excelentíssimo Ministro Alexandre de Moraes, inclusive, reitera no bojo dessa MI 7452, que pessoas do sexo masculino que se autopercebem como mulheres, utilizam signos ligados à ideia de feminilidade, reproduzem características corporais e estéticas semelhantes às do corpo feminino e pessoas que alegam ter identidade de gênero feminina (experiência privada no papel de gênero), estão sendo consideradas mulheres. 


Em linguagem literal e de fácil compreensão a todos: o sentimento de que essa pessoa seria uma mulher através de sua experiência privada no papel de gênero a tornaria mulher para fins legais.


Vejamos o conceito de mulher trazido pelo Excelentíssimo Ministro no bojo do MI:

“O conceito de mulher empregado pela lei refere-se não apenas a pessoas do sexo feminino, sob uma perspectiva exclusivamente biológica, mas abrange igualmente pessoas com identidade de gênero feminina, como mulheres transsexuais. Isso, inclusive, já foi corretamente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça (cf. REsp n. 1.977.124/SP, Relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 22/4/2022).”

A Lei Maria da Penha já foi casuisticamente aplicada a transsexuais do sexo masculino que se identificam como mulheres (mulheres trans) sob o argumento colacionado acima, de que estes são mulheres.


Agora foi também permitido que a Lei Maria da Penha possa ser utilizada por homens homossexuais sob o argumento de que há omissão legislativa quanto à proteção de homens em relacionamentos homoafetivos que são vítimas de violência doméstica e familiar, devendo o Estado criar mecanismos que protejam as pessoas vulneráveis nessas relações e previnam a escalada da violência, reconhecendo assim sejam aplicadas as medidas protetivas a homens em relações homoafetivas.


Mas voltando à Lei Maria da Penha, eu gostaria de utilizar essa oportunidade para relembrar o contexto histórico no qual esta lei foi criada o os motivos que ensejaram sua promulgação. A Lei Maria da Penha adveio de uma pressão de organismos internacionais que vendo o quadro de violência que o país apresentava contra as mulheres, entenderam necessário que se editasse norma específica para a proteção dessas mulheres vítimas de violência.


A lei leva o nome da farmacêutica Maria da Penha, uma das tantas vítimas de violência contra a mulher neste país. Seu marido tentou matá-la por duas vezes e na última tentativa forjou um assalto e atirou contra ela com uma espingarda, deixando-a paraplégica. Após mais de 19 anos da ação penal, o marido de Maria da Penha foi condenado em 2002, cumprindo DOIS ANOS DE PRISÃO. Sim, isso mesmo, apenas dois anos.


O Centro Pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM formalizaram denúncia à comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e o Brasil foi condenado em 2001. O relatório da OEA, além de impor o pagamento de indenização a Maria da Penha, responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica recomendando a adoção de diversas medidas conta a violência contra a mulher.


Em 1º agosto de 1996 foi promulgada a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher que aconteceu no em Belém do Pará em 09 de julho de 1994, tendo sido incorporada em nosso ordenamento jurídico através de decreto com STATUS SUPRALEGAL, que no nível de hierarquia das normas está entre as leis e a Constituição, no ordenamento jurídico brasileiro.


Somente em 7 de agosto de 2006, doze anos depois da Convenção ter acontecido, a Lei Maria Penha foi promulgada - Lei 13.340, de 7 agosto de 2006.


Não foi fácil aprovar essa legislação em 2006. Não aprovaríamos hoje uma lei como essa em benefício das mulheres. O momento, apesar de difícil, era outro. A misoginia atualmente apresenta as características clássicas às quais já estamos acostumadas, mas acrescida também de novas cores. No entanto o ódio, a intolerância e a falta de respeito às mulheres, permanecem os mesmos.


Na leitura da Lei Maria da Penha, é possível verificar que a palavra “mulher” inúmeras vezes no texto. As mulheres tem o direito de terem espaços e leis unicas e exclusivas para si, uma vez que possuem questões que são específicas. E existe uma legislação específica para isso, que comumente enfrenta muitos ataques, assim como as mulheres.


Muitos grupos querem descredibilizar esse diploma legal sob intenções maliciosas, fazendo com que a população acredite que se trata de uma lei inútil, sem relevância, não protege ninguém, que só serve para perseguir homens que são vítimas de mulheres amarguradas e vingativas, que não conseguem superar um relacionamento, ou que entenderam tudo errado.


Uma legislação que poderia melhorar em alguns aspectos, que carece de meios materiais para a sua devida aplicação, mas que ainda assim é uma legislação boa e que precisa ser defendida.


Nenhum direito está garantido.


Como os homens conseguiram, através de Mandado de Injunção, que a Lei Maria da Penha fosse utilizada para eles, qual meio processual eles utilizaram? Esse meio era realmente cabível?


O Mandado de Injunção é um mecanismo criado pela Constituição Federal de 1988 para lidar com a omissão constitucional e pressupõe a existência de um direito constitucional assegurado que se encontre obstado. 

Para que seja objeto de mandado de injunção não basta ser faltosa a norma regulamentadora, é preciso que a regra ausente advenha de um mandado expresso constitucional.


A Constituição Federal assevera que:

“conceder-sê-a mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”.

O impetrante do Mandado de Injunção deveria demonstrar inviabilização do exercício constitucional de liberdade constitucional ou de prerrogativa inerente à nacionalidade, soberania ou cidadania, o que por óbvio não se aplica ao caso.


Só seria cabível mandado de injunção coletivo em caso de uma omissão legislativa a direitos e liberdades constitucionalmente garantidos através de uma norma de eficácia limitada, ou seja, uma norma constitucional que emana esse comando, mas que para produzir efeitos jurídico necessita que o congresso nacional edite uma lei que regulamente esse mandamento constitucional.


O mandado de injunção deve atender uma pretensão subjetiva, a pretensão do autor de fruir ou exercitar um direito garantido constitucionalmente, podendo ser uma pretensão individual e eventualmente podendo assumir a modalidade coletiva.


O mandado de injunção teve anos de aplicação conturbada na doutrina no sentido de que já se defendeu que o mandado de injunção tinha por objetivo produzir uma decisão judicial que criasse norma concreta capaz de garantir os direitos do Art. LXXI (direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania) e essa norma valeria para as partes até a edição de norma geral pela autoridade competente.


O STF inicialmente entendia que não cabia editar regra diante de inovação legislativa, apenas comunicava o congresso da mora constitucional. Atualmente o entendimento do STF veio ao final se encontrar com o entendimento original da doutrina, de que o mandado de injunção deve conseguir resultado que garanta a fruição do Direitos constitucionais.


Não há um mandamento do exercício constitucional de liberdade constitucional e sim um mandado de legislativo sancionador, no sentido de impor ao estado assegurar mecanismos de defesa e coibir a violência no âmbito de relações familiares.


Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”

Vejamos o Art. 2º da Lei 13.300/2016 (A Lei do Mandado de Injunção).

2º Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta total ou parcial de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

A Lei do mandado de injunção fala em falta total ou parcial de norma regulamentadora que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais


Os autores do MI pedem que medidas sancionadoras de natureza cível sejam aplicadas aos agressores. Seria isso exercício de direito ou liberdade? Seria direito nosso sancionar o outro pela conduta ilícita conosco ou isso é papel do estado no exercício da jurisdição?


Bem, um outro ponto é que essa decisão ignora a discricionariedade legislativa, a opção que o legislador tem de não legislar sobre algum tema de maneira específica conforme as expectavas e anseios de determinado grupo, que não se encontra desamparado, mas que tem que recorrer aos remédios penais comuns designado à população geral em situação de violência e que requer alguma medida urgente para ver seu agressor afastado de seu convívio.


De fato as medidas protetivas de urgência disciplinadas pela Lei Maria da Penha são mecanismos muito mais eficazes e amplos de proteção às vítimas de violência doméstica do que a simples aplicação das medidas cautelares do art. 319 do Código de Processo Penal, entre outras razões, por não depender da tipificação penal da violência e prescindir da existência de boletim de ocorrência, investigação ou ação penal ou cível em curso (art. 19, § 5º, da Lei n. 11.430/2006).


Mas será que o legislador aplicaria da mesma forma os institutos da Lei Maria da Penha no caso de homens LBGTI+ e gostaria que estes se utilizassem do mesmo aparato que foi posto à disposição das mulheres?


Sem falar que existem no congresso projetos de lei sobre situações de violências específicas à população masculina GBQI+ que se encontram em tramitação no Congresso Nacional [1].


O processo legislativo é muitas vezes moroso, a própria lei Maria da Penha foi promulgada somente doze anos após a convenção no Pará ter acontecido.


O Senado Federal, ao prestar informações no MI 7.452, mencionou que atualmente tramitam no congresso nacional NOVE projetos de lei que têm como objetivo a proteção de pessoas GBQI+.


O julgamento o MI 7452 ainda não transitou em julgado (não foi finalizado) sendo passível ainda de recurso. De modo que, iremos ainda acompanhar os desdobramentos dessa ação, mas conforme o status atual, HOMENS HOMOSSEXUAIS podem se utilizar de medidas protetivas da Lei Maria da Penha.


Outro ponto de atenção é que conta no dispositivo da decisão a afirmação

justifica a impetração de mandado de injunção (...) a ausência de norma que estenda a proteção da Lei Maria da Penha aos casais homoafetivos masculinos e às mulheres transexuais e travestis tem inviabilizado a fruição de referido direito fundamental por este grupo.

O relator a despeito de fazer questão de mencionar em sua decisão que o conceito de mulher mudou e que mulheres trans são mulheres e que mulher é qualquer pessoa que se identifique com o gênero feminino.


Em sua decisão, explicita que os transsexuais e travestis NÃO PODEM se utilizar da integralidade da lei Maria da Penha e coloca-os em igualdade de situação com os homens homossexuais, colocando-os no grupo de HOMENS GBQI+ e não ao lado das mulheres, pois caso fossem se utilizariam da lei inteira, o que não foi concedido.


Fato é que demorou DOZE ANOS para que a Maria da Penha fosse promulgada e UM ANO E SEIS MESES para que os homens pudessem se utilizar das ferramentas do judiciário e se apoderarem dela, ainda que parcialmente.


REFERÊNCIAS:


BARCELLOS, Ana Paula de. Curso de direito constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2018. BRASIL.

Lei LEI Nº 11.340, DE 7 DE AGOSTO DE 2006

LEI Nº 13.300, DE 23 DE JUNHO DE 2016.

[1] Projeto de lei nº 2653/2019, de autoria do Deputado Federal David Miranda, que “dispõe sobre a proteção de pessoas em situação de violência baseada na orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características biológicas ou sexuais”.O projeto prevê medidas de prevenção como, por exemplo, “a articulação das políticas públicas para a proteção integral das pessoas LGBTI+ e outras pessoas vítimas dos tipos de violência de que trata a Lei” (art. 7º, inc. I) e “a implementação deatendimento adequado às especificidades das pessoas LGBTI+ no âmbito dos serviços e  políticas públicas, de modo a garantir-lhes a não-discriminação e o gozo efetivo dos direitos” (art. 7º, inc. V).


MATRIA - Mulheres Associadas, Mães e trabalhadoras do Brasil

Sede: Rua Jerônimo Coelho, 78 - Sala 294 - Joinville/SC - Centro

CEP 89201-050​

E-mail:  matria@associacaomatria.com

  • Youtube
  • X
  • Instagram

Site criado pelas mulheres da MATRIA de forma autônoma e independente.

bottom of page