CFM anunciará novas regras para bloqueadores puberais, hormonioterapia cruzada e cirurgias em menores: o que dizem as evidências?
- Mátria Associação Matria
- 14 de abr.
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Atualizado: 16 de abr.
Enquanto ONGs acusam conselho de ignorar ciência baseadas em uma revisão específica, análise aponta que revisões sistemáticas que consideram a qualidade das evidências recomendam prudência com bloqueadores, hormônios e cirurgias na infância e adolescência
Texto elaborado por professoras e pesquisadoras associadas da MATRIA
Na semana passada, a imprensa noticiou que o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicará uma nova resolução atualizando as diretrizes relativas ao protocolo de “afirmação de gênero” no Brasil. A decisão proibirá o bloqueio puberal, a hormonioterapia cruzada e a realização de procedimentos cirúrgicos esterilizantes em menores de 18 anos. O CFM fundamenta a atualização citando a necessidade de maior cautela e segurança para os pacientes, com base em discussões internacionais, na análise de estudos e dados disponíveis sobre os estágios a longo prazo e os aspectos biopsicossociais do desenvolvimento nessa faixa etária.
Diversas organizações não governamentais como a ANTRA e Minha Criança Trans estão repudiando a decisão. Em uma postagem em sua rede social, a ANTRA alega que a decisão do CFM é anticientífica e não está verificada com as evidências. Segundo a ONG:
“Uma revisão sistemática internacional com 91 estudos científicos publicados no Journal of Internal Medicine em 2022, encontrou o que profissionais de saúde especializados e famílias já sabem na prática, que a terapia hormonal afirmativa (GAHT) pode salvar vidas”.
O estudo mostraria que adolescentes trans sofrem com ideação suicida e que os bloqueios hormonais e hormonais cruzados prejudicam o sofrimento psíquico e promovem “melhora global da saúde” desses adolescentes.
Isso nos levou à pergunta: o CFM está ignorando as melhores evidências e negando um tratamento eficaz a crianças e adolescentes por causa de ideologia?
A resposta curta é: não, não está. A resposta mais longa exige entender o que são as revisões sistemáticas. De fato, ao agregar estudos primários semelhantes e analisar sua qualidade, uma revisão sistemática é considerada a forma mais robusta de evidência para embasar decisões relacionadas a tratamentos clínicos. Porém, nem todo estudo de revisão segue necessariamente as parâmetros necessários para chegar a conclusões robustas e confiáveis.
O que são e como são feitas as revisões sistemáticas?
O ponto de partida de uma revisão sistemática é a formulação da questão clínica, que representa seu objetivo principal, juntamente com o desenvolvimento de um projeto de revisão. Em seguida, realiza-se uma busca abrangente na literatura com a finalidade de identificar o maior número de estudos pertinentes à questão. No entanto, muitos estudos publicados têm qualidade metodológica muito baixa devido ao risco de viés (quando o desenho ou métodos estudo distorcem os resultados), inconsistência (quando os resultados de diferentes estudos variam entre si), indireção (quando o desenho do não é adequado para a pergunta de pesquisa), imprecisão (quando os resultados não são estatisticamente sólidos) e viés de publicação (quando estudos com resultados negativos tendem a ser suprimidos, por exemplo). Por isso, uma revisão que inclui estudos de baixa qualidade ou não ajusta suas dúvidas de acordo com a qualidade dos estudos revisados apenas replica e propaga informações pouco confiáveis por terem baixa qualidade, e por isso não serve de base para tomada de saúde. Este é o caso da revisão acima, que apenas compila resultados sem avaliar sua qualidade.
Os problemas metodológicos do estudo citado pela ANTRA
O estudo "Terapia hormonal de afirmação de gênero: uma revisão de literatura atualizada com um olho no futuro" (D'hoore & T'Sjoen, 2022) apresenta-se como uma revisão sistemática, mas não adota os passos fundamentais de uma revisão sistemática de evidências, a saber: (1) formular uma pergunta de pesquisa clara; (2) identificar publicações relevantes de forma abrangente; (3) avaliar a qualidade metodológica dos estudos incluídos; (4) sintetizar criticamente as evidências disponíveis; e (5) interpretar os resultados à luz da qualidade e consistência dos dados.
A principal limitação metodológica do estudo está no descumprimento da etapa 3: não há qualquer procedimento formal de avaliação da qualidade dos estudos incluídos. Os autores não mencionam o uso de ferramentas padronizadas como o sistema GRADE, a Cochrane Risk of Bias Tool ou qualquer outro instrumento reconhecido para análise crítica de evidências científicas.
Apenas extraia e dados de estudos diversos, sem avaliar sua robustez metodológica, comprometendo seriamente o rigor da análise e a confiabilidade das conexões. Isso porque os estudos clínicos estão sujeitos a diversas limitações que afetam diretamente o grau de confiança que se pode ter em seus resultados.
E, afinal, quais os critérios para uma boa revisão sistemática?
Para a avaliação de qualidade, deverão ser utilizados métodos transparentes, objetivos e replicáveis de avaliação. Um dos métodos mais comuns, usado internacionalmente é o sistema GRADE (Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation, (https://www.gradeworkinggroup.org/) Este sistema é utilizado por diversas organizações, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Instituto Nacional de Saúde e Excelência Clínica (NICE) e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) e é recomendado pelo Ministério da Saúde brasileiro. A abordagem GRADE permite avaliar e graduar a Certidão do conjunto de evidências em uma revisão sistemática, ou seja, a confiança que depositamos sobre a eficácia e segurança de um tratamento. Outros métodos semelhantes incluem a Escala Newcastle-Ottawa para Estudos de Coorte e a Ferramenta de Avaliação Crítica Crowe.
Para boas revisões sobre terapias hormonais e cirúrgicas, recomendamos os estudos indicados pela Sociedade para Medicina de Gênero Baseada em Evidências, que podem ser acessados em https://segm.org/studies
O que dizem as revisões sistemáticas sobre a eficácia de bloqueadores de puberdade, hormônios cruzados e cirurgias para menores de idade?
Não há revisões sistemáticas com avaliação da qualidade das evidências que recomendam a expansão do uso de bloqueios de puberdade, hormônios cruzados e cirurgias. As revisões concluem que os estudos atualmente disponíveis apresentam falhas conceituais e metodológicas relevantes. As evidências disponíveis são muito limitadas e não sugerem que os sintomas disforia de gênero e saúde mental melhorem significativamente com o uso de bloqueadores de puberdade ou hormônios cruzados em crianças e adolescentes. Assim, ao contrário do que afirma organizações ativistas com base em uma revisão que não considera a qualidade das evidências, todas as revisões baseadas em qualidade recomendam cautela aos riscos conhecidos e à incerteza de benefícios. Por isso, vários países como Reino Unido, Suécia, Itália, Austrália, Nova Zelândia e Dinamarca têm restrições aprovadas como as propostas pelo CFM.
Abaixo, elencamos revisões sistemáticas confiáveis, realizadas com avaliação adequada de qualidade dos estudos revisados:
Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados (NICE). (2020a). Revisão de evidências: Análogos do hormônio liberador de gonadotrofina para crianças e adolescentes com disforia de gênero. https://cass.independent-review.uk/nice-evidence-reviews/
Instituto Nacional de Excelência em Saúde e Cuidados (NICE). (2020b). Revisão de Evidências: Hormônios de afirmação de gênero para crianças e adolescentes com disforia de gênero. Disponível em https://cass.independent-review.uk/nice-evidence-reviews/
Thompson, L., Sarovic, D., Wilson, P., Irwin, L., Visnitchi, D., Sämfjord, A., & Gillberg, C. (2023). Uma revisão sistemática PRISMA da literatura sobre disforia de gênero em adolescentes: 3) tratamento. PLOS global public health, 3(8), e0001478.
Cass, H. (2024). Revisão independente de serviços de identidade de gênero para crianças e jovens: Relatório final . https://cass.independent-review.uk/?page_id=936
Taylor, J., Mitchell, A., Hall, R., Heathcote, C., Langton, T., Fraser, L., & Hewitt, CE (2024). Intervenções para suprimir a puberdade em adolescentes com disforia ou incongruência de gênero: uma revisão sistemática. Arquivos de Doenças na Infância, 109 (Supl. 2), p. 33-p. 47.
Zepf, FD, König, L., Kaiser, A., Ligges, C., Ligges, M., Roessner, V., ... & Holtmann, M. (2024). Além do NICE: revisão sistemática atualizada sobre as evidências atuais do uso de agentes farmacológicos bloqueadores da puberdade e hormônios sexuais cruzados em menores com disforia de gênero. Zeitschrift fur Kinder-und Jugendpsychiatrie und Psychotherapie.
Taylor, J., Mitchell, A., Hall, R., Langton, T., Fraser, L., & Hewitt, CE (2024). Intervenções hormonais masculinizantes e feminizantes para adolescentes com disforia ou incongruência de gênero: uma revisão sistemática. Arquivos de Doenças na Infância, 109 (Supl. 2), págs. 48-56.