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Miopia seletiva

  • Foto do escritor: Mátria Associação Matria
    Mátria Associação Matria
  • há 6 dias
  • 4 min de leitura

É comum sermos acometidos por uma espécie de miopia que nos impede de enxergar com clareza o cenário completo das consequências que uma decisão considerada simples pode vir a causar. Nesses casos, a analogia pode servir como um rico recurso pedagógico pois ela nos ensina, pela demonstração das semelhanças – que nem sempre são óbvias –, os aspectos que podem ser comparados para corrigir a nossa estreiteza de visão.


Vejamos o caso da Licença por Adesão e Compromisso (LAC). Este é o nome bonito dado ao critério de autodeclaração que prospera no Projeto de Lei conhecido como PL da devastação, ou ainda, a mãe de todas as boiadas.


Alguns especialistas dizem que, se aprovado, o PL vai tornar mais frouxas as regras de licenciamento ambiental – o que, evidentemente, é um eufemismo. Na verdade, a autodeclaração não vai tornar as regras mais frouxas, mas vai pôr fim ao regramento que preserva o meio ambiente. Digo isso porque, nessa lógica, para o empreendedor do agro, por exemplo, bastará uma autodeclaração de ciência do regramento e de boa fé do seu cumprimento para, então, fazer o que quiser.


“Ah! Mas, para evitar abusos, haverá fiscalização” – bradarão os defensores desta indecência. Ocorre que a equação é muito simples: depois da queimada, depois da derrubada das árvores, depois da devastação, depois da morte do rio, a fiscalização se torna completamente inútil. Com a autodeclaração, os ganhos na exploração da terra e acumulação de riquezas serão individuais, mas o potencial destrutivo desta medida gerará impactos coletivos e irreversíveis. É urgente, portanto, uma grande revolta contra a obtusa ideia de autodeclaração.


Aproveitando que capturei a sua atenção, gostaria de reforçar esse ponto – o da autodeclaração – para, através de analogia, demonstrar os prejuízos que essa medida, que encontra eco em outras políticas públicas, já está nos causando.


Vigora no Brasil uma outra forma de autodeclaração que – talvez por miopia, ou falta de interesse – não está sendo muito discutida, mas que, já está causando enorme prejuízo aos pactos coletivos e regramentos estabelecidos em nossa sociedade. Trata-se da autodeclaração para identidade de gênero. À primeira vista, parece um tema muito distinto do licenciamento ambiental, pois não soa imediatamente como algo ligado a políticas pública. É aí mesmo que mora o engano que pretendo desfazer por meio de analogia.


Podemos começar concordando que quando uma pessoa do sexo masculino, por meio de autodeclaração, afirma que é uma mulher, modificando nome e sexo na certidão de nascimento (como já é permitido no país), estamos tornando mais frouxas as regras que definem o que é uma mulher. Certo? Para os que preferem os eufemismos podemos dizer que é uma forma de alargar o conceito de mulher.


Argumento que esse tipo de autodeclaração produz riscos por ser capaz de pôr fim em acordos sociais baseados na realidade material do sexo, incorrendo, eventualmente, em afronta à Constituição – expediente que, aliás, iguala este exemplo ao caso ambiental.


Explico: a Constituição Federal, adota “sexo” como critério objetivo e pétreo para a separação carcerária. No entanto, graças à autodeclaração de identidade de gênero, alguns presídios femininos do Brasil já estão recebendo pessoas do sexo masculino que se autodeclaram mulheres.


Vamos falar a verdade: ninguém precisa estar míope para fingir que não vê a situação das encarceradas no Brasil. No entanto, já existem dados capazes de abrir nossos olhos: na prisão feminina do DF, 19 pessoas do sexo masculino autoidentificadas como mulheres, sem cirurgia genital, geraram 12 inquéritos disciplinares por ameaça ou desrespeito às policiais penais mulheres – taxa desproporcionalmente alta em comparação às outras 566 detentas, que geraram 33 inquéritos no total. Os dados são de 2023, mas não há motivos para imaginar que a situação melhorou. Na realidade, o número de pessoas do sexo masculino que ocupam cadeias femininas no Brasil só aumentou de lá pra cá.


Vale dizer que, como no caso ambiental, o prejuízo da autodeclaração é variado. Não é só na experiência de privação de liberdade que a substituição do marcador biológico do sexo pela autodeclaração de gênero pode oferecer insegurança. É só ter olhos e ver o problema se agravando nos esportes, nas alas hospitalares, nos banheiros, na política de cotas e, ainda, na emissão de benefícios baseados em fatores biológicos como é o caso da licença maternidade e da aposentadoria antecipada – prerrogativas que, até pouco tempo atrás eram exclusividade das pessoas do sexo feminino, mas que agora também atendem pessoas do sexo masculino, desde que sejam autodeclaradas mulheres. Percebe a boiada passando?


Depois que os senadores da república fizeram aquela defesa selvagem da LAC na presença da maior autoridade em Meio Ambiente que o país já produziu, a Ministra Marina Silva, uma espécie de revelação se deu: ficou evidente que o problema ali não tem nada a ver com miopia. A verdade é que todos enxergam muito bem as vantagens que a autodeclaração – em suas variadas formas – produz para a manutenção do poder masculino sobre as mulheres e sobre a natureza.


O pior míope é aquele que mesmo diante da possibilidade de ampliar sua visão de mundo, decide continuar fingindo que não vê.








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